Brasil recusa Boeing foi a manchete do New York Times após a muitas
vezes adiada decisão brasileira de gastar quase US$ 5 bilhões na compra
de jatos de combate da fabricante sueca Saab, em vez da rival americana
Boeing. Representantes do governo brasileiro insistiram em que critérios
financeiros e técnicos determinaram a escolha, rejeitando a ideia de
que se tenha tratado de uma reprimenda ou um revide por causa das
atividades de espionagem dos EUA, que já tinham levado a presidente
Dilma Rousseff a cancelar uma visita de Estado a Washington, atitude
quase sem precedentes. Por que o Brasil optou pelos caças suecos é uma
questão complexa que revela muito sobre as atuais relações Brasil-EUA.
Mas ainda mais vital é a preocupação com os efeitos que essa decisão
terá no futuro dessas relações.
Os laços entre americanos e brasileiros foram abalados nos anos
recentes por uma série de desacordos em questões regionais e globais. O
estrago foi particularmente grave no caso do impasse acerca das
negociações entre Brasil e Irã em 2010 sobre enriquecimento de urânio.
Em 2013 a relação enfraquecida chegou ao ponto mais baixo no intervalo
de uma geração, ou mais, por causa da revelação das dimensões da
espionagem americana no Brasil, que invadiu até as comunicações da
presidente Dilma com seus principais assessores e os arquivos
particulares da Petrobrás, estatal brasileira do setor de petróleo. Em
resposta, a presidente não só cancelou a viagem de Estado, como iniciou
uma campanha internacional contra as operações de inteligência dos EUA.
A revelação das atividades de espionagem dos EUA e a subsequente
resposta de ambos os governos reforçaram a antiga desconfiança entre os
dois países. Representantes de Washington consideraram a reação
brasileira tensa e exagerada. Para eles, o Brasil precisa entender que a
segurança dos EUA exige expansivo esforço global de inteligência, que
Washington não pretendeu prejudicar o Brasil e que essas questões devem
ser tratadas longe dos olhos do público.
Do ponto de vista do Brasil, os EUA agiram novamente como valentões. A
invasiva espionagem de Washington sublinhou a disposição americana de
obter vantagens indevidas de sua superioridade econômica e tecnológica.
Para piorar a situação, os EUA trataram a indignação da chanceler alemã,
Angela Merkel, com muito mais seriedade do que as queixas da presidente
brasileira. A diferença no tratamento não passou despercebida em
Brasília.
A escolha entre Saab e Boeing pode ser defendida de acordo com os
critérios do próprio Brasil - os custos de compra e operação das
aeronaves, a qualidade do seu desempenho e a obtenção de acesso a novas
tecnologias. Os jatos da Saab, por exemplo, são bem mais baratos que o
modelo da Boeing e o governo sueco impõe bem menos restrições à
transferência de tecnologia. Mas o avião americano, há muito tido como o
preferido pela Força Aérea Brasileira, é tecnicamente muito superior.
Não há razão para duvidar da escolha brasileira em bases técnicas ou
econômicas. A questão central para as relações Brasil-EUA envolve o
momento em que a decisão foi tomada. Após as grandes manifestações
contra a corrupção e o desperdício de dinheiro pelo governo, e com a
aproximação das eleições presidenciais, foi surpreendente o Brasil ter
optado por concluir a negociação nesse momento. Relatos da imprensa
dizem que até o alto escalão da Força Aérea foi notificado apenas poucos
dias antes do anúncio da compra. Depois de sucessivos governos
brasileiros terem adiado a decisão por anos, previa-se que ela ainda
estivesse distante. Isso indica que os brasileiros quiseram, de fato,
enviar uma mensagem a Washington sobre sua crescente desconfiança em
relação ao governo americano e também deixar claro seu desapontamento
com a resposta dos EUA às críticas contra seu programa de espionagem.
O governo americano não ficou feliz com a rejeição do Boeing F-18,
vista por muitos como mais uma reação intempestiva à vigilância dos EUA e
outro retrocesso na relação bilateral. O governo brasileiro com certeza
sabia que essa seria a interpretação de suas ações pelos EUA e
prosseguiu mesmo assim.
A disputa relacionada às operações de espionagem é o segundo maior
confronto entre Brasil e EUA nos últimos três anos. O primeiro,
envolvendo o Irã, teve custo maior e continua a provocar estrago, ainda
que os laços do Brasil com o país do Oriente Médio tenham esfriado.
A revelação das operações de espionagem já frustrou duas tentativas
de traçar um rumo mais cooperativo e menos contencioso para as relações
Brasil-EUA. A visita de Estado da presidente Dilma teria sido a ocasião
primordial para restaurar a boa vontade entre os dois países. Em boa
medida, uma visita bem conduzida teria demonstrado a importância
regional e global do Brasil na política externa americana, resultado que
a maioria dos brasileiros claramente desejava. A decisão de comprar os
caças da Boeing teria impacto ainda maior. Isso teria apagado a maioria
das dúvidas sobre o desejo brasileiro de aprofundar os arranjos
econômicos e de segurança com os EUA e aberto caminho para nova
cooperação tecnológica e militar. Nada no horizonte se aproxima da
oferta de oportunidades na visita de Estado ou da compra dos jatos da
Boeing. Por mais que sejam agora revistas pela Casa Branca, as operações
de espionagem prosseguem.
Não há caminho fácil para solucionar o desacordo atual entre Brasil e
EUA. Formalmente, a visita de Dilma foi apenas "adiada", e não
cancelada - assim ela pode ser remarcada, mas nenhum dos dois países se
mostrou muito interessado em fazê-lo. E uma reunião de cúpula
presidencial pode ser perda de tempo até que as tensões subjacentes
sejam moderadas e ambos os governos tenham a sensação de que algo de
concreto possa ser alcançado. A melhor maneira de começar pode ser os
dois governos reconhecerem que o relacionamento entre eles enfrenta
sério problemas e começarem a focar pesadamente em impedir qualquer
deterioração adicional.
*Peter Hakim é presidente emérito do Diálogo Interamericano.
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